DOIS BURACOS E DUAS MEDIDAS
ANTENOR PINHEIRO
É justo se rebelar contra buracos que surgem nas ruas das cidades no
período chuvoso, que é quando os problemas de captação de águas pluviais se
intensificam. Porém, a questão não reflete uma honesta preocupação da população
com a cidade enquanto espaço de todos. A indignação com os buracos somente
ganha dimensão porque, na essência, eles comprometem as rodas e sistemas
mecânicos dos carros, além dos incômodos baques que enervam qualquer pacato
cidadão – cada pancada vinda do assoalho faz tremer o coração motorizado.
Isso tem explicação e é compreensível que ocorra. Primeiro porque
reclamar de buracos no asfalto tem fina sintonia com o modelo de gestão urbana
adotado nas cidades brasileiras, cujos recursos drenam com prioridade à demanda
do transporte individual motorizado. Segundo porque a posse e uso do automóvel
tornaram-se predadores e impregnaram-se no imaginário da população como valor
prevalente, símbolo de poder e modernidade. Como diz o antropólogo Roberto Da
Matta, somos “uma sociedade que adotou o carro como símbolo de superioridade
social”. Daí, a importância dos buracos das ruas na vida das pessoas!
Sob outros parâmetros, o estridente protesto contra os buracos, embora
cíclico, promove lideranças, cria pauta jornalística, incandesce ânimos e desperta
a alegoria popular. No fundo é produto da hipocrisia, porque camufla o que há
de mais precioso para a vida em comunidade - o sentido de urbanidade, o
significado de cidade. É muito barulho pra tão pouco alcance, vez que não tange
o real interesse para o senso coletivo, como o transporte sobre trilhos,
barcas, bicicletas, ônibus e calçadas - sistemas que juntos deslocam 64 por
cento das pessoas.
A perversa lógica não é de agora, evolui desde o presidente Washington
Luiz - com seu “governar é fazer estradas" – e se cristaliza com
Juscelino Kubitscheck – com sua política macroeconômica baseada no
incremento da indústria automotiva. Algo que justifica as atuais isenções de
impostos destinadas a incentivar venda de carros sem quaisquer compensações.
O esdrúxulo dessa curta história dos buracos das ruas está no seu
contraponto que persiste o ano inteiro e pouco é considerado pela população: os
buracos, obstáculos, invasões e outras ocorrências que corrompem a opção do
deslocamento a pé nos espaços de mobilidade das cidades. Aqui ainda mais se
aprofunda o paradoxo da estética urbana, pois ao contrário do que ocorre com o
viário dedicado aos carros, o desprezo pelos buracos das calçadas no Brasil
decorre da absoluta ausência de políticas destinadas à recuperação dos
ambientes públicos que prezam pelo princípio da equidade no uso do solo urbano.
A despeito das dezenas de leis em vigor,
a verdade é que culturalmente as calçadas não são importantes para os gestores
das cidades, apesar de serem jurídica e tecnicamente também vias públicas. Os
milhares de buracos e ocupações irregulares que atormentam os pedestres, em
especial as pessoas com deficiência e os que têm mobilidade reduzida, são
perenes e nunca mereceram a devida atenção da governança, nem a mesma
intensidade de gritaria que se ouve contra os buracos sazonais que cortam os
pneus dos carros. Enfim, buracos na calçada são menos importantes que buracos
no asfalto - eis a perversa lógica dominante!
Somente uma sociedade acossada por décadas de omissão e plena ausência
de investimentos públicos em mobilidade urbana é incapaz de perceber a curta
distância que há entre protestar ativamente contra os buracos no asfalto e
conviver passivamente com os buracos nas calçadas, apesar de ambos serem
produto da mesma decadente gestão das cidades brasileiras.
Autor:
Antenor Pinheiro é jornalista e perito
criminal de classe especial aposentado.
Link para baixar em PDF: Boletim Opinião 003
Boletim Opinião nº003 - DOIS BURACOS E DUAS MEDIDAS, ANTENOR PINHEIRO
Reviewed by Título Projeto: Fórum de Mobilidade Urbana: Participação, Contribuição e Socialização de conhecimento técnico e científico.
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